“O tempo que temos na mão
O
sinal da Jardim Botânico com a Maria Angélica fechou, os carros pararam e,
quando íamos atravessar, o Martín, pela primeira vez, soltou a minha mão. Ele
olhou para os lados, fez uma cara séria e foi, sozinho e decidido, cruzando as
faixas brancas, a caminho do lado de lá.
Foi
só um pequeno gesto de um filho aos oito anos, mas, para o pai, que ficou com a
mão solta no ar, foi um grande choque. A gente tem a ilusão de que os filhos
vão precisar sempre de nós para comer direito, se vestir, se lembrar da hora e,
é claro, atravessar a rua. É uma ideia aconchegante, que dá todo um sentido
para a vida. A nossa, não a deles. Quando Martín me largou foi como se o
futuro, lá na frente, desse uma piscada para mim: esse menino daqui a pouco vai
ser um adolescente, depois um homem e, no futuro, aquele lá na frente, é ele
que vai estar segurando uma criança pela mão, preocupado se os carros vão parar
no sinal.
Será
que nesse dia, lá na frente, ele ainda vai precisar de mim?
Do
instante no sinal não vai ficar a minha melancolia, mas, sim, a alegria dele
por largar a mão do pai pela primeira vez. Será um desses momentos da infância
que ficam guardados no fundo da gaveta, na caixinha das joias. Outros tantos
serão esquecidos pelo caminho, e é natural que seja assim, diz a cabeça,
enquanto o coração fica apertado, com saudade do que já foi, de atravessar —
ainda ontem — essa mesma esquina com um carrinho de bebê, mostrando para o
Martín o sinal, os carros, a faixa, e avisando do perigo de atravessar a rua
sozinho.
Uma
das coisas que os pais aprendem rápido com os filhos é que o tempo passa
voando.
Dias
depois levei o meu pai ao cinema. Ele tem 80 anos e está com Alzheimer. Ver um
filme é uma das coisas que ainda o diverte, mesmo esquecendo cinco minutos
depois. A memória dele é como um trem que vai embora devagar. O que ele ainda
lembra hoje, já não vai lembrar amanhã. Ainda assim, parece feliz com as poucas
recordações que lhe restam. A tristeza fica com a gente, que fica na estação
vendo ele ir embora. O que eu mais queria é que ele estivesse bem, que ele
conseguisse ler esta coluna, que me explicasse o que se faz quando o filho
larga a sua mão pela primeira vez.
Eu
queria ele de volta.
Escolho
um filme de super-heróis, porque coisas mais complicadas ele já não consegue
acompanhar. O filme está em terceira dimensão, então preciso explicar várias
vezes por que ele está usando óculos escuros dentro de um cinema. Ele esquece o
que eu disse, olha para mim de óculos escuros no meio da escuridão e começa a rir.
Eu também acho graça, e, nesse instante em que rimos juntos, a caixinha de
joias se abre no fundo da minha gaveta, e eu vejo o quanto a gente já foi
feliz.
O
filme começa e ele fica fascinado com a terceira dimensão na tela, até que
chega aquela cena clichê que tem em todo filme 3D, quando voam pedras, balas ou
mísseis para a frente, na direção da plateia. Meu pai, que já tinha esquecido
que aquilo era só uma ilusão de ótica, é pego de surpresa e, vendo as pedras
vindo em nossa direção, leva a mão à frente.
Não
na frente dele. Na minha.
E
nesse pequeno gesto de um pai, aos 80 anos, me dou conta que, aconteça o que
acontecer, a gente sempre vai precisar um do outro."
Fonte:
Publicado no O Globo, texto de Leo Aversa.
Imagem:
Reprodução.
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